Encrespando

"Encrespar", na minha terra, dá a ideia de incômodo, de indignação, de alguém que deu um salto de seu lugar de conforto por algo que o incomodou. Já "alisar" é usado com a conotação de quando alguém é condescendente com algo.
Encrespo e não aliso! é um blog feito para relatar o incômodo do racismo em nossa sociedade, especialmente manifesto pela mídia e literatura voltadas ao público infantil. Sem condescendências.
Minha filha me ensinou, desde seus primeiros movimentos, a concentrar a energia de criação e a buscar a gênese. Sim, pretensiosamente, hoje, tenho um alvo mais profundo que as raízes do racismo: a sua semente. Para que não fecunde os corações das novas pessoas, dessas crianças que são nossos filhos e filhas; para que não dê mais frutos, aquelas sementes não podem mais encontrar solos férteis para renascerem racismos no mundo.
Estou mais silenciosa, mas a mente fervilha, tendo em sua grande tela a imagem de um jardim de flores multicoloridas.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Chapinha em Laranjinha?








Uma das primeiras coisas que compreendi, como mãe, é o desafio do entorno. O desafio do entorno quer dizer que nossa educação não é apenas nossa palavra, nosso exemplo, muito embora sejam esses os pilares - acredito sim - da educação de uma filha ou um filho. O entorno, o ambiente físico e social, obviamente, nos compõem como seres humanos. Como Marx dizia, não somos qual mônada isolada, dobrada em si mesma, mas seres sociais, cujas próprias forças devem ser organizadas como forças sociais, se estamos buscando a emancipação humana, verdadeiramente. Em outras palavras, quando cuidei das primeiríssimas interações de minha filha, compreendi realmente que não há como mudar o mundo se não mudarmos a nós mesmas(os), assim como não há sentido mudar a nós mesmos se não for também para melhorar o mundo. E, nessa relação dialética, a função materna é muito mais trabalhosa que a de militante de movimento social. Com certeza.
Assim, aceitando o desafio do entorno, tratei de construir ao máximo um ambiente sem a semente racista da standartização branca. Procurei lençóis, fraldas, mantimentos, quaisquer produtos para o cuidado infantil que não impusessem o padrão de correção branco - aquele que, nas teorias psicológicas da autoconsciência, indicam um padrão considerado como o "certo", o "belo" e o ideal ao que buscamos nos refletir para alcançá-lo - o que invariavelmente cria as tantas sensações de desconforto com a própria imagem , e, necessariamente, com a própria história.
Qual o quê...qualquer e mais pobre ou mais rico produto infantil estava completamente arraigado nos standarts racistas: sempre bebês e mães brancos, loiros e de olhos azuis. Sempre anjos padronizados no branco. Lamentei não ter mais tempo e paciência para pintar e bordar eu mesma o enxoval de Inaê, e fiquei a sonhar o dia em que mulheres negras pudessem se profissionalizar em produzir vestuário e mantimentos com a imagem negra, para a saúde mental de nossas crianças.
Trabalhei, portanto, pela redução de danos. Assim que nasceu e foi crescendo, mantive-me a catar as imagens ao menos neutras: se não havia crianças negras, que os desenhos fossem de bichinhos, objetos infantis. Mas logo percebi que ali também estava sujeito a ter embutido o standart racista - depois eu conto como.
Nos primeiros desenhos infantis, encontrei mais possibilidades - embora ainda ínfimas. A primeira escolha foi Kiriku, desenho até hoje bem querido por Inaê. Depois achei na Turma da Moranguinho uma possibilidade de apresentar as diferenças como bem-vindas e necessárias: ali temos uma ruiva, uma negra, uma indígena e uma branca na sua formação inicial - Moranguinho, Laranjinha, Biscoitinho e Uvinha.
E, no desenho original, mais um fator positivo:a menina negra não era "Cafezinho", ou "Chocolate". Simplesmente, Laranjinha, o que para mim constitui no reconhecimento de que o mundo das pessoas negras é bem mais amplo do que o padrão racista propõe.E assim fui comprando alguns dvds e procurando trazer a imagem da turminha diversificada sempre que possível.
É quando me deparo com algo que não conhecia. A turma da Moranguinho foi crescendo e se estilizando, e as imagens de crianças iniciais foram dando lugar a figuras mais pré-adolescentes.Para minha surpresa, os lindos pompons crespinhos de Laranjinha viraram um lindo cabelão crespo, com enfeites de trancinha, numa repaginada da personagem. Para minha decepção, os lindos cabelos crespos de Laranjinha foram, numa versão patricinha da turma, a-li-sa-dos. E, se olharmos melhor, também a pele dela se torna um pouco mais clara.
Decepção, porém, não é surpresa. Isso demonstra que não podemos ainda falar, de forma linear, que estamos melhorando quanto ao racismo - que "as coisas já foram bem piores". De algum modo, sim. Mas, de outro, vemos, como no "caso Laranjinha", que a estratégia de padronização racista sabe se reinventar muito bem, a cada dia. O perigo mora nos detalhes "desapercebidos" pela maioria. Pela normalização constante das imposições do standart branco na alma de tod@s nós.
Ai, ai... pense num desafio!

5 comentários:

  1. Olá Rebeca, parabens pelo blog e pelo post. É, de fato, impressinante a tranformação da Laranjinha!!!! Excelente refelxão. Beijo, Eliane

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    1. Pois é, Eliane...e tem mais coisas sobre Laranjinha! No próximo post, verás! Beijo.

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  2. E se eu disser que adoro comprar aquelas famílias de pano que vende na Ceart (sou cearense). Meu marido até brinca que só sou eu que compro. hehe Mas voltando. Um dia achei uma família marrom. OPA! Que maravilha. Seria, se não custassem uns 10 reais a mais. PASSEI!
    Em outra loja, também da Ceart, fui atrás e a mesma "brincadeira". Estava com minha mãe, então comentei com ela. Paramos e ficamos olhando em todas as embalagens e realmente, mais caras eram as "negras". Falei com a vendedora, que sorriu e disse que faziam isso "sem querer. querendo..."
    Bem, comprei uma família de "crentes" a mulher e a pequena tem umas cabelos loiros que vão até o joelho, mas pelo menos não são lisos.

    ô arte difícil isso de diversificar os padrões das bonecas...

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    1. É, Di, não é mesmo fácil... aí cabe à gente mesmo falar, encrespar e não alisar! Continue procurando e perguntando por bonecas negras. É o que eu faço também. Beijo.

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  3. Ótimo texto. Sempre fiz questão que minha filha tivesse esta diversidade em suas bonecas. Realmente é bem dificil achar bonecos negros em lojas físicas, na net a facilidade é maior. Até pouco tempo a Nena (uma linda boneca negra de pano) era a preferida da filhotinha.

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