Encrespando

"Encrespar", na minha terra, dá a ideia de incômodo, de indignação, de alguém que deu um salto de seu lugar de conforto por algo que o incomodou. Já "alisar" é usado com a conotação de quando alguém é condescendente com algo.
Encrespo e não aliso! é um blog feito para relatar o incômodo do racismo em nossa sociedade, especialmente manifesto pela mídia e literatura voltadas ao público infantil. Sem condescendências.
Minha filha me ensinou, desde seus primeiros movimentos, a concentrar a energia de criação e a buscar a gênese. Sim, pretensiosamente, hoje, tenho um alvo mais profundo que as raízes do racismo: a sua semente. Para que não fecunde os corações das novas pessoas, dessas crianças que são nossos filhos e filhas; para que não dê mais frutos, aquelas sementes não podem mais encontrar solos férteis para renascerem racismos no mundo.
Estou mais silenciosa, mas a mente fervilha, tendo em sua grande tela a imagem de um jardim de flores multicoloridas.

terça-feira, 20 de março de 2012

O Negro segundo Maurício de Souza

Quando criança, gostava sim da Turma da Mônica. Com a limpeza mental, no entanto, fui percebendo os lances implícitos ali: criar guerrinhas entre meninos e meninas, estímulo à violência,ao bulling, à naturalização do engano, da traição e da mentira e, como sói acontecer, ao racismo. Em primeiro lugar, a ausência negra é gritante. Da turma central, o personagem com características negras é Cascão, pelo cabelo pixaim com que é caracterizado. Ele é o sujo da história (Cascuda, sua namoradinha, é uma sarará; os dois são assim negro-mestiços), o meio bobão que segue Cebolinha em suas sempre frustradas armadilhas para Mônica. Depois, pretendendo utilizar uma linguagem politicamente correta, estendeu a turma para personagens diversificados. Jeremias apareceu como o único preto, ao lado de um japa, de uma menina de cadeira de rodas, de um cego... e por ali foi, aparentemente atentos à já tão propalada diversidade. Mas apenas dois negro-mestiços e um preto, salvo engano, dentre dezenas de personagens brancos. Assim, nunca incluí a Turma da Mônica entre os desenhos ou revistas pra minha filha, que inevitavelmente acabou por acessá-la por fonte indireta. Fazer o quê. Foi então que meu ativismo passou por um instante de desatenção e, pumba!, expus voluntariamente a minha filha à semeadura do racismo em sua tenra mentezinha. Neste derradeiro domingo, fui à livraria com a filhota, meu companheiro e seu filho, onde lhe disse poder escolher à vontade um livro para comprar. Ela escolheu "O Gênio e as Rosas e outros contos", da Editora Globo, uma parceria de Paulo Coelho, autor das histórias, e Maurício de Souza e Maurício de Souza Produções Ltda., publicado em 2010. Torci o nariz, pensei...folheei as histórias e gostei das que eu li, sempre trazendo boas e humanas mensagens espirituais. Então decidi não radicalizar e levar o livro mesmo.
Mas eis que, lendo conto a conto nesses dias, deparo com algo aterrorizante. Uma história sobre o Mal e o Guerreiro de Luz. Não, o problema não é falar sobre o Mal, afinal a história quer falar da vitória do tal Guerreiro de Luz, representado pelo negro de pele clara, Cascão. O problema está nisto:
O mal é apresentado por uma imagem que representa um homem negro, de pele escura e nariz largo. Ora, direis, não será um certo exagero pensar que isso seria deliberado? Então percebam a representação do Bem neste mesmo livro, pelo personagem do Anjinho da Turma:
O anjo, o Bem, é branco, loiro e de olhos azuis. Tudo bem, isso não é novidade em Maurício de Souza. Há muito o movimento negro denuncia essa representação discriminatória nos quadrinhos da Turma da Mônica. Mas, vamos combinar, depois de tanta coisa dita, já entrando na segunda década do século XXI... ainda fazer essa representação de extremo teor racista do Mal sendo uma pessoa negra e o Bem sendo uma pessoa branca?
Fechei o livro lamentando a minha distração. Melhor correr o risco do exagero que incorrer no erro da alimentação da ideologia racista na mente de uma criança. Imaginem o que fica gravado nos olhos de qualquer criança que olhe para uma imagem negra representada como o mal e uma imagem branca representada como o bem. O que isto semeia no suave coração infantil?

quarta-feira, 14 de março de 2012

Direito de nascer e de crescer

Realmente, essa Revista Pais & Filhos é um absurdo de racista. Melhor comprar outra pra ler coisas interessantes a respeito de noss@s rebent@s. Uma revista que traga a imagem da existência negra, que tenha em seu universo de cuidado infantil nossos bebês negros. Não é? Que tal a Revista Crescer, da Editora Globo?
Essas revistas Crescer são do mesmo período das capas coletadas da Pais & Filhos, demonstradas retrospectivamente de março de 2012 a março de 2011. A opção que fiz por colocar 13 meses, e não os 12 de um ano, é por compreender que o 13º é abertura de um novo ciclo. Fica a indagação se nesse novo ciclo, com nossas denúncias e mensagens às editoras - quem sabe - poderemos ver algo diferente nas bancas de revista. Ora, direis, quem precisa delas? Bem, eu, realmente, não preciso delas para criar a minha filha, nem aconselhar afilhad@s e sobrinh@s. Mas é algo além do consumo, muito além. Trata-se do cenário de nossa sociedade. Todas as imagens midiáticas nos rodeiam e nos acompanham no dia-a-dia, cada vez mais, em todos os instantes de nossa vida em vigília. Quiçá nos acompanham nos sonhos também. Cada vez mais, as cenas televisivas, outdoors, capas de revistas que se estampam em nossos olhos na passagem mais rápida pelas ruas, embalagens, cadernos, livros, o tempo todo e em todo lugar. Imagem e som. Comprando ou não tais revistas, elas estão aí impondo um desejo. Aí é que está.

terça-feira, 13 de março de 2012

Só os brancos nascem?

(março de 2012) Esta é edição deste mês de março, 2012, da Revista Pais & Filhos, Editora Manchete. Feita em São Paulo, tem circulação e renome nacional nesta área de cuidado infantil, ao lado da Revista Crescer. Fofinho, não? Aliás, todas as crianças são fofíssimas, despertando aquela vontade de encher de cheiro aquela bolinha rosa, loira e de olhos azuis. Ops...como assim? É, então, amig@s. Algo muito simples: para a Revista Pais & Filhos, só os brancos nascem, e preferencialmente os brancos loiros e de olhos claros. Só as crianças brancas são fofinhas. Num país em que @s negr@s são, pelo menos, 51% da população, nenhuma fofinha criança negra - nenhumazinha - recebeu espaço de capa da Pais & Filhos no tempo de um ano inteiro. Mostro a vocês aqui, retrospectivamente, as capas de março de 2012 a março de 2011 - 13 edições completamente brancas. Para um país 100% branco talvez - reforço, talvez - isso não fosse tão indecente.
(fevereiro de 2012) Acontece que somos um país de maioria negra. Em alguns estados, a população negra é até pequena; em outros, predominante. Negras e negros de várias tonalidades, vários tipos corporais, diversas etnicidades; cabelo pixaim, enrolado, misturado, nariz mais largo ou mais fino, negritudes diversas que no entanto são reconhecidas socialmente pela sua matriz africana e toda a história que comporta o corpo negro. Essa história indesejável, para a matriz europeia, tem sido constantemente relegada ao esquecimento das páginas escritas - mas não é esquecida de nenhum modo: porque, se não nas páginas dos historiadores clássicos, no corpo das pessoas que a carrega. Por isso o corpo d@ negr@ é tão negado, invisibilizado. Porque conta uma história indesejável a uma ideologia hegemonicamente branca.
(janeiro de 2012). E se tem algo que a história negra carrega é acerca do fundamento da família. A família, nos sentidos afro-brasileiros (assim como nos povos nativos), é quem sustenta, congrega, fortalece, permite existir e resistir. A mãe que conduz os filhos, pelejando duramente para garantir suas vidas neste mundo sob leis humanas tão desumanas, é a mulher negra que centraliza a força da casa, do terreiro, da comunidade. Se não é mãe de sangue, é mãe-madrinha, mãe-de-santo, mãe-vó. A família, para os povos negros, tem a força da origem e da continuidade. É o espaço em si de guarnição - espiritual e social. Daí que se formam quilombos: numa casa ou numa rua, mães, tias, avós, irmãos, primos e primas se aquilombam, sem a classificação dicotômica de "família nuclear" e "família extensa", comum à família da cultura burguesa.
(edições de dezembro a setembro de 2011) Por que não temos imagens de crianças negras em um ano de edições da Revista Pais & Filhos? Porque pais, mães e filhos e filhas negr@s não interessam à revista. Ela simplesmente assume o padrão racista do branco desejável, negando terminantemente a negritude brasileira. O maior problema dessa postura racista é que perpetua a negação da família negra aos olhos da sociedade em geral. Primeiramente, impõe uma imagem familiar que exclui os pais e filhos negros; nega, portanto, às mães negras (porque às mães é destinada a revista, apesar do título) se sentirem parte de uma dimensão materna - o cuidado infantil. Consequentemente, nega aos bebês negros o direito de pertencerem a este universo dos anjinhos, dos serezinhos que devem receber cuidados e mimos especiais.
(edições de agosto a abril de 2011) Bem, está chegando a hora de preparar o almoço. Deixo vocês, leitoras e leitores, com estas imagens e algumas reflexões. Em um ano apenas de publicação, o que somente uma revista de maternagem e cuidado infantil foi capaz de semear? Não vejo bons frutos nisto. Abaixo, a mais nórdica das capas do universo desta breve pesquisa, publicada no mês de março de 2011.
Luther King, dá uma dica a mais de como realizar teu sonho!

domingo, 11 de março de 2012

Argentina tambien es Afro!



Uma publicação interessante a respeito, encontrada no site da Fundação Palmares (copio e colo):

A LOS NEGROS ARGENTINOS, SALUD - Ângela Corrêa

Um belíssimo livro com fotografias únicas, textos emocionantes, e a origem africana na Argentina a partir de uma visão muito distinta daquela que existe na história oficial. A cultura negra na Argentina.


Disponível na Biblioteca da Fundação Cultural Palmares
SBS, Quadra 02, Edf. Elcy Meireles - Brasília/DF/Brasil.

sábado, 10 de março de 2012

Na Argentina não há pretas?




Mas a chapinha em Laranjinha é uma repaginada da própria produtora da Turma de Moranguinho. Já na América Latina, mais especificamente em um país chamado Argentina - na maior cara de pau, ressalve-se - para fazer o popular programa televisivo escolheram uma, usando a expressão de Helio Santos, menina "negro-mestiça", que seria reconhecida por nós como branca. Naranjita é representada por uma pequena atriz de cabelos crespos e de pele clara (bem parecida com essa que vos escreve). Não houve nenhum pudor em clarear uma personagem preta. Poderia mesmo dizer: nenhum escrúpulo.
Taí a foto das atrizes argentinas e, em destaque, a atriz de Laranjinha - a Laranjinha argentina.
Será que o céu na Argentina é verde?

sexta-feira, 9 de março de 2012

Chapinha em Laranjinha?








Uma das primeiras coisas que compreendi, como mãe, é o desafio do entorno. O desafio do entorno quer dizer que nossa educação não é apenas nossa palavra, nosso exemplo, muito embora sejam esses os pilares - acredito sim - da educação de uma filha ou um filho. O entorno, o ambiente físico e social, obviamente, nos compõem como seres humanos. Como Marx dizia, não somos qual mônada isolada, dobrada em si mesma, mas seres sociais, cujas próprias forças devem ser organizadas como forças sociais, se estamos buscando a emancipação humana, verdadeiramente. Em outras palavras, quando cuidei das primeiríssimas interações de minha filha, compreendi realmente que não há como mudar o mundo se não mudarmos a nós mesmas(os), assim como não há sentido mudar a nós mesmos se não for também para melhorar o mundo. E, nessa relação dialética, a função materna é muito mais trabalhosa que a de militante de movimento social. Com certeza.
Assim, aceitando o desafio do entorno, tratei de construir ao máximo um ambiente sem a semente racista da standartização branca. Procurei lençóis, fraldas, mantimentos, quaisquer produtos para o cuidado infantil que não impusessem o padrão de correção branco - aquele que, nas teorias psicológicas da autoconsciência, indicam um padrão considerado como o "certo", o "belo" e o ideal ao que buscamos nos refletir para alcançá-lo - o que invariavelmente cria as tantas sensações de desconforto com a própria imagem , e, necessariamente, com a própria história.
Qual o quê...qualquer e mais pobre ou mais rico produto infantil estava completamente arraigado nos standarts racistas: sempre bebês e mães brancos, loiros e de olhos azuis. Sempre anjos padronizados no branco. Lamentei não ter mais tempo e paciência para pintar e bordar eu mesma o enxoval de Inaê, e fiquei a sonhar o dia em que mulheres negras pudessem se profissionalizar em produzir vestuário e mantimentos com a imagem negra, para a saúde mental de nossas crianças.
Trabalhei, portanto, pela redução de danos. Assim que nasceu e foi crescendo, mantive-me a catar as imagens ao menos neutras: se não havia crianças negras, que os desenhos fossem de bichinhos, objetos infantis. Mas logo percebi que ali também estava sujeito a ter embutido o standart racista - depois eu conto como.
Nos primeiros desenhos infantis, encontrei mais possibilidades - embora ainda ínfimas. A primeira escolha foi Kiriku, desenho até hoje bem querido por Inaê. Depois achei na Turma da Moranguinho uma possibilidade de apresentar as diferenças como bem-vindas e necessárias: ali temos uma ruiva, uma negra, uma indígena e uma branca na sua formação inicial - Moranguinho, Laranjinha, Biscoitinho e Uvinha.
E, no desenho original, mais um fator positivo:a menina negra não era "Cafezinho", ou "Chocolate". Simplesmente, Laranjinha, o que para mim constitui no reconhecimento de que o mundo das pessoas negras é bem mais amplo do que o padrão racista propõe.E assim fui comprando alguns dvds e procurando trazer a imagem da turminha diversificada sempre que possível.
É quando me deparo com algo que não conhecia. A turma da Moranguinho foi crescendo e se estilizando, e as imagens de crianças iniciais foram dando lugar a figuras mais pré-adolescentes.Para minha surpresa, os lindos pompons crespinhos de Laranjinha viraram um lindo cabelão crespo, com enfeites de trancinha, numa repaginada da personagem. Para minha decepção, os lindos cabelos crespos de Laranjinha foram, numa versão patricinha da turma, a-li-sa-dos. E, se olharmos melhor, também a pele dela se torna um pouco mais clara.
Decepção, porém, não é surpresa. Isso demonstra que não podemos ainda falar, de forma linear, que estamos melhorando quanto ao racismo - que "as coisas já foram bem piores". De algum modo, sim. Mas, de outro, vemos, como no "caso Laranjinha", que a estratégia de padronização racista sabe se reinventar muito bem, a cada dia. O perigo mora nos detalhes "desapercebidos" pela maioria. Pela normalização constante das imposições do standart branco na alma de tod@s nós.
Ai, ai... pense num desafio!